Crédito, Reprodução/XLegenda da foto, Eelatório da ONU aponta que pelo menos 73 armas fabricadas no Brasil foram parar em regiões sob o controle rebeldeArticle informationPistolas fabricadas no Brasil pela empresa Forjas Taurus estão sendo anunciadas em redes sociais por vendedores de armas em áreas controladas por rebeldes houthis, no Iêmen. O país está em guerra civil desde 2015 e sob embargo internacional para a importação de armas. A reportagem da BBC News Brasil identificou anúncios publicados por vendedores de armas localizados em Sanaa, capital do Iêmen, vendendo pistolas e munição vendida pela Taurus. Os anúncios são feitos em perfis abertos de redes como o X ou o Facebook.A constatação também faz parte de um relatório elaborado por um painel de especialistas das Nações Unidas sobre o Iêmen publicado em outubro de 2024 ao qual a BBC News Brasil teve acesso. Segundo o documento, parte das armas anunciadas por traficantes no Iêmen teria tido como compradores países como a Arábia Saudita, Tanzânia e Djibouti e podem estar sendo vendidas por pessoas ligadas ao comando dos rebeldes houthis. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a empresa, o governo brasileiro vêm falhando em aumentar o controle sobre a exportação de armamentos para regiões sensíveis e que as plataformas digitais não dão a devida atenção para derrubar anúncios como os identificados pela reportagem.Procurada, a Taurus disse por meio de nota que “cumpre a legislação brasileira” e “não mantém qualquer ordem de negócios com o Iêmen ou com países em conflito”. O X e a Meta, empresa que controla o Facebook, não responderam aos questionamentos da reportagem da BBC News Brasil. Em nota, o Ministério da Defesa, responsável pela autorização da exportação de produtos bélicos do Brasil, disse que autorizou a exportação de pistolas para a Arábia Saudita e para a Tanzânia entre 2021 e 2023. O órgão disse que a autorização cumpriu os trâmites legais previstos e que “não tinha conhecimento” de que as armas teriam sido utilizadas para fins ilícitos e que o órgão não realiza o “acompanhamento, rastreio e controle do destinatário/uso final dos produtos”. O Ministério das Relações Exteriores e o Exército, que também avaliam a exportação de produtos bélicos, não responderam. ‘Sua melhor escolha’O Iêmen é um localizado na Península Arábica de 34 milhões de habitantes. Ele faz fronteira com Omã e com a Arábia Saudita. De acordo com a ONU, é o quarto país menos desenvolvido do mundo. Ainda de acordo com a entidade, 82,% da população vive sob algum tipo de pobreza.Desde 2014, o país vive uma guerra civil. De um lado, estão as forças oficiais do governo de Abd-Rabbu Mansour Hadi, apoiadas por uma coalizão sunita liderada pela Arábia Saudita. Do outro, está a milícia rebelde huti, de xiitas, apoiada pelo Irã.De acordo com a ONU, a guerra já causou a morte de pelo menos 230 mil pessoas, a maioria de forma indireta e o país vive hoje o que a organização classificou como a pior crise humanitária do planeta.Em 2015, os houthis tomaram o controle da capital do país, Sanaa. E é de lá que partiram, segundo perfis em redes sociais, os anúncios de armas brasileiras comercializadas por vendedores de armas situados em áreas controladas por rebeldes houthis.A reportagem da BBC News Brasil identificou quatro perfis de vendedores de armas localizados em Sanaa, capital do Iêmen controlada por rebeldes houthis.Ao todo, foram identificados pelo menos 10 anúncios de pistolas de diversos tipos fabricadas pela Taurus.A pistola com a maior quantidade de anúncios foi do modelo G3, calibre 9mm. As postagens foram feitas entre o início de 2023 e janeiro deste ano.Em um deles, publicado em 29 de setembro de 2024 e ainda disponível no X, o vendedor parece tentar enaltecer o produto.”Sua melhor escolha”, diz a postagem em árabe.O valor da pistola, que vem acompanhada de uma maleta, dois magazines para as munições e instrumentos para limpeza da arma custa, segundo o anunciante, a partir de 1.000 riads sauditas, o equivalente a R$ 1,7 mil.Outro vendedor com perfil aberto no X anunciou um outro kit da Taurus semelhante no dia 7 de novembro de 2024.Neste caso, a arma contém uma indicação de que teria sido fabricada na cidade de Bainbridge, no Estado norte-americano da Geórgia, onde a Taurus também tem uma fábrica.No mesmo dia, o vendedor anunciou outro kit semelhante. Desta vez, a inscrição na arma indica a sua provável procedência: “Made in Brazil”.A marca também aparece em um conjunto de três pistolas anunciadas por outro vendedor em uma postagem feita no dia 7 de janeiro. Nas postagens, os vendedores e possíveis compradores trocam informações sobre as características das armas brasileiras. Entre as supostas qualidades das armas estariam a sua versatilidade, tamanho e preço baixo. Os anúncios não se restringem às armas fabricadas pela Taurus. Há todo tipo de armamento sendo vendido, de diferentes fábricas e países. Há pistolas italianas, austríacas, turcas e norte-americanas. Também são anunciados fuzis de assalto, sub-metralhadoras e equipamentos de comunicação como rádios e walkie-talkies.Relatório da ONU aponta problemasUm relatório elaborado por especialistas no mercado de armas a serviço da ONU foi divulgado em outubro de 2024 e fez uma análise sobre o comércio de armas no Iêmen.Desde 2014, o país é alvo de uma série de sanções pelo Conselho de Segurança da ONU que incluem a proibição de venda de armas ao país.Segundo o painel, os rebeldes houthis organizaram uma complexa rede para burlar as sanções internacionais.”De acordo com fontes, os Houthis estão organizando e controlando a aquisição e venda ilegal de armas nas áreas sob seu controle, possivelmente em violação das disposições de embargo direcionado de armas e congelamento de ativos. Vários líderes houthis colaboram com comerciantes de armas ou operam lojas de armamentos, obtendo receitas significativas, incluindo impostos, provenientes desse comércio”, diz um trecho do relatório.Os especialistas contratados pela ONU constataram que apesar da vigência das sanções, o país continua a receber armas de diferentes origens e, algumas delas, são comercializadas livremente em áreas controladas por rebeldes em perfis de redes como o X e o Facebook.O documento reproduziu alguns dos links onde as armas estavam sendo anunciadas, mas alguns deles já foram derrubados pelo Facebook ou pelo X.No caso do Brasil, o relatório identificou, por exemplo, que pelo menos 73 pistolas fabricadas pela Taurus estavam sendo vendidas pela internet por diversos vendedores em áreas controladas pelos houthis.Com o auxílio da Taurus, os especialistas cruzaram os números de série das armas identificadas com os destinos oficiais de cada pistola.Esse cruzamento mostra que ao menos 16 pistolas encontradas à venda no Iêmen haviam sido vendidas, inicialmente, para o Ministério do Interior da Arábia Saudita e deveriam estar sendo usadas pelas forças de segurança do país.Outras 37 haviam sido vendidas pela Taurus para o governo da Tanzânia e, segundo documentos enviados pelo país, deveriam ser usadas exclusivamente para fins de segurança nacional.Outras 20 pistolas, segundo o relatório da ONU, faziam parte de um lote de armas exportadas pela Taurus do Brasil para o Djibouti em 2015.A venda causou repercussão internacional porque, segundo o Ministério Público Federal (MPF), o comprador era um homem apontado pelas autoridades brasileiras como Fares Mohamed Hassan Manna.Segundo o MPF, Manna era um conhecido traficante de armas oriundo do Iêmen quando realizou a compra junto à Taurus e era, inclusive, alvo de sanções internacionais.Havia suspeitas de que a compra fosse uma forma de desviar as armas para o conflito no Iêmen.À época, a Taurus e seus executivos alegaram inocência e que não sabiam que Manna seria um traficante de armas internacional.O caso se arrastou até 2024, quando a Justiça Federal absolveu os executivos da Taurus. Manna, que também foi denunciado, deixou o Brasil na época em que o caso veio a público e nunca mais foi encontrado.ResponsabilidadesPara o coordenador de projetos da Global Rights Compliance, Daniel Mack, a constatação de que armas de fabricação brasileira estão sendo vendidas em áreas controladas por rebeldes houthis levanta questionamentos sobre as responsabilidades do governo brasileiro, da Taurus e das redes sociais que permitem esses anúncios.”É difícil pensar que a venda inicial dessas armas tenha passado por um processo de análise de risco, tanto da empresa quanto do governo brasileiro sobre onde essas armas poderiam parar”, afirmou Mack à BBC News Brasil.A análise citada por Mack faz parte do processo burocrático brasileiro para que materiais bélicos como armas e munições sejam exportadas para outros países.Segundo a legislação brasileira, para que produtos como armas de fogo sejam exportados é preciso que a empresa submeta sua intenção ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), Ministério da Defesa e ao Exército Brasileiro. No caso de pistolas, a exportação só é autorizada com a anuência prévia do Ministério da Defesa que também consulta o MRE e o Exército. A diretora de programa da organização não-governamental Sou da Paz, Natália Pollachi, diz que as evidências apontam que as autoridades brasileiras devem melhorar os controles sobre a exportação de armas. Ela explica que como o Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o comércio de armas, o país é obrigado a realizar análises de risco sobre cada venda com o intuito de evitar que o material vendido possa ser usado em graves violações de direitos humanos como perseguições étnicas, entre outras. “Os casos recentes indicam que essa análise de risco feita pelo governo brasileiro precisa, no mínimo, ser bastante aprimorada. Sabemos que a decisão final é do Ministério da Defesa e que ele pode, inclusive, se opor ao parecer do Ministério das Relações Exteriores”, afirmou Pollachi à BBC News Brasil. A especialista criticou a falta de transparência sobre as informações a respeito das vendas de armas brasileiras para o exterior. Segundo ela, o Brasil estaria entre os países menos transparentes do mundo neste quesito. “A gente tem muito pouca informação sobre como se dá o processo decisório brasileiro sobre a venda de armas. Infelizmente, esse é um dos casos que se tornaram exceção quando se trata da Lei de Acesso a Informação (LAI). Pedidos são negados sob alegação de sigilo industrial”, disse Pollachi. Daniel Mack afirma que, historicamente, o governo brasileiro não teria uma postura rígida no controle das exportações de armas de fogo.”O governo brasileiro tem que fazer uma análise de risco mais robusta para saber para onde essas armas vão e em quais mãos elas realmente vão parar”, afirmou.Em nota, o Ministério da Defesa disse que as exportações de pistolas para a Arábia Saudita e para a Tanzânia, primeiros destinos das armas, foram autorizadas pelo órgão. A pasta disse, no entanto, que não acompanha a movimentação das armas após a venda. “Informamos que este Ministério: não tinha conhecimento, conforme os fatos apresentados, de que os materiais foram utilizados para fins ilícitos; e não realiza o acompanhamento, rastreio e controle do destinatário/uso final dos produtos”, disse um trecho da nota. Em relação à Taurus, Mack afirma que a empresa precisa melhorar o seu próprio compliance e se abster de vender armas para compradores ou países que tenham potencial de eventual desvio.”A empresa precisa ter um processo de diligência devida para evitar que suas armas colaborem com eventuais violações de direitos humanos em situações de conflito. Ela deveria um pouco mais de contenção e segurar um pouco suas vendas em situações sensíveis […] do contrário, eles podem até mesmo colocar a própria empresa em risco”, disse.Em nota, a Taurus disse que seus “os contratos de exportação de armas são realizados observando todos os procedimentos legais aplicáveis e obtidas todas as autorizações dos órgãos reguladores brasileiros”. Segundo a empresa, entre os documentos obtidos está o Certificado de Usuário Final que garantiria à companhia que o comprador não reexportaria as armas depois de recebê-las.Ainda de acordo com a nota, a Taurus disse que colabora plenamente com qualquer investigação sobre possíveis condutas criminosas, com o compromisso de combater o desvio de armas e o comércio ilegal” que forneceu informações ao painel de especialistas do Conselho de Segurança da ONU assim que foi comunicado.”Cabe a esse órgão e demais órgãos competentes fazer as investigações necessárias sobre eventual desvio ilegal de armas e conduta criminosa”, disse a nota.Na avaliação de Daniel Mack, a responsabilidade das plataformas digitais como X e Facebook é uma das que mais chama atenção.Segundo ele, os recentes anúncios de mudança nas formas de moderação de conteúdo feitos pelo X e pela Meta (controladora do Facebook, WhatsApp e Instagram) pode aumentar a quantidade de anúncios de armas disponíveis nas redes.”A gente sabe que as plataformas estão indo no sentido contrário do que deveria ser e tirando pessoas que faziam a revisão do conteúdo dos anúncios. O ambiente virtual está operando sem xerife e corremos o risco de viver um faroeste cibernético em que vale tudo, inclusive comercializar armas”, disse.Para Natália Pollachi, a revelação de que armas brasileiras estão sendo vendidas redes sociais não chega a surpreender. “Infelizmente, não surpreende. A gente recebe relatos muito frequentes de que armas estão sendo comercializadas com facilidade nessas plataformas. Algumas vezes, com fotos e nomes. Já tentamos dialogar com essas empresas, sugerimos melhorias, mas a gente sente que isso não é prioridade para eles”, disse Pollachi. Meta e X não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.A origem do conflitoA origem do conflito no Iêmen remonta à Primavera Árabe de 2011, quando uma revolta popular derrubou o então presidente do país, Ali Abdullah Saleh, que entregou o poder ao vice, Abdrabbuh Mansour Hadi.A expectativa era de que a transição traria estabilidade ao país, mas a gestão de Hadi enfrentou diversos problemas, entre eles ataques do grupo Al-Qaeda, movimentos separatistas no sul do país, corrupção, insegurança alimentar e o fato de que muitos grupos militares seguiam leais a Saleh.Desiludidos, muitos iemenitas, mesmo sunitas, apoiaram os houthis, e, ao final de 2014, os rebeldes tomaram Sanaa, forçando Hadi a se exilar.O conflito tomou proporções internacionais em março de 2015, quando a Arábia Saudita liderou uma coalizão de oito países árabes, com apoio de Estados Unidos, Reino Unido e França, para combater os houthis. O objetivo declarado era restaurar o governo de Mansour Hadi.A coalizão temia que o avanço dos houthis fortalecesse a influência do Irã, um rival regional xiita, no Iêmen, país vizinho da Arábia Saudita. A Arábia Saudita acusou o Irã de fornecer armas e apoio logístico aos houthis, algo que o governo iraniano nega.Internamente, os dois lados do conflito enfrentaram divisões. Os houthis romperam com Saleh, e o ex-presidente foi morto por combatentes ligados ao grupo em dezembro de 2017.Em 2015, forças da coalizão saudita retomaram o controle de Áden e expulsaram os houthis de grande parte do sul do Iêmen. Ainda assim, o governo de Hadi permanece enfraquecido e operando em exílio, enquanto os houthis mantêm o controle de Sanaa.Nos últimos anos, a situação passou a gerar ainda mais preocupação internacional depois que grupos houthis passaram a realizar ataques a navios cargueiros que passam pelo estreito de Mandeb, que dá acesso ao Mar Vermelho, considerado um dos corredores de trânsito de cargas mais movimentados do mundo.Os sequestros de embarcações são apontados por especialistas como uma das formas que a milícia teria encontrado para financiar suas atividades.Nos últimos meses, rebeldes houthis também passaram a fazer ataques com mísseis a Israel.
FONTE
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